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Pe. Alexander Schmemann – O conceito cristão de morte

“Ele sofreu e foi enterrado. E ressuscitou …” Depois da cruz, da descida à morte, houve a ressurreição dos mortos: a confirmação principal, fundamental e decisiva do Símbolo da Fé, uma confirmação do próprio coração do Cristianismo. De facto, “se Cristo não ressuscitou, então a vossa fé é vã”. Essas foram as palavras do Apóstolo Paulo, as quais permanecem fundamentais para o Cristianismo até hoje. O Cristianismo é uma crença, em primeiro lugar e acima de tudo, no facto de que Cristo não permaneceu na sepultura, que a vida brilhou da morte e que, na Ressurreição de Cristo de entre os mortos, a absoluta e abrangente lei da morte, que não tolerava exceções, foi, de alguma forma, dilacerada e superada.

A Ressurreição de Cristo compreende – repito – o próprio coração da fé e das boas novas cristãs. No entanto, por mais estranho que possa parecer, na vida quotidiana do Cristianismo e dos cristãos do nosso tempo, há pouco espaço para essa fé. É como se ela estivesse obscurecida: o cristão contemporâneo, sem ter consciência, não a rejeita, mas, de alguma forma, esquiva-se e não vive a fé como os primeiros cristãos. Ao frequentar a igreja, ele, naturalmente, ouve no serviço cristão as sempre alegres e retumbantes confirmações: “pisando a morte pela morte”, “a morte é tragada pela vitória”, “a vida reina” e “nenhum morto permanece na sepultura”. Mas, pergunte-lhe o que realmente pensa sobre a morte e, muitas vezes, infelizmente, ouvirá algum tipo de afirmação incoerente, como a imortalidade da alma ou a vida em algum tipo de mundo para além do túmulo – uma crença que existia mesmo antes do Cristianismo. E isso na melhor das circunstâncias, pois, na pior das hipóteses, será confrontado simplesmente pela perplexidade e ignorância: “Sabe, eu nunca refleti realmente a esse respeito.”

Ora, é absolutamente necessário pensar sobre isso, porque é, com fé ou incredulidade – não simplesmente na imortalidade da alma, mas precisamente na Ressurreição de Cristo e na nossa Ressurreição universal no final dos tempos – que todos os cristãos “permanecem ou caem”, como é hábito dizer-se. Se Cristo não ressuscitou, então o Evangelho é a mais horrível de todas as fraudes. Mas, se Cristo ressuscitou, não somente todas as nossas representações e crenças pré-cristãs na imortalidade da alma mudam radicalmente, como simplesmente desaparecem. A partir de então, toda a questão da morte passa a apresentar-se sob uma luz totalmente diferente. Aqui está o cerne da questão: a Ressurreição, acima de tudo, assume um conceito e uma atitude em relação à morte profundamente diferentes das suas representações religiosas habituais e, em certo sentido, esse conceito é o oposto de tais representações.

Deve-se dizer, francamente, que a crença clássica na imortalidade da alma exclui a fé na Ressurreição, porque esta (e aí está a raiz da questão) inclui, em si mesma, não apenas a alma, mas também o corpo. Uma leitura simples do Evangelho não deixa dúvidas sobre isso. Ao ver Cristo ressuscitado, os Apóstolos pensaram ser Ele um fantasma ou uma visão. A Sua primeira tarefa foi permitir aos Apóstolos sentir a realidade do Seu corpo. Ele tomou a comida e a comeu na frente deles. Ele ordenou que o incrédulo Tomé tocasse no Seu corpo para, através dos seus dedos, ser convencido da Ressurreição. E quando os Apóstolos passaram a acreditar, foi aí, precisamente, que a proclamação da Ressurreição (a Sua realidade, a Sua “corporeidade”) tornou-se o principal conteúdo, poder e alegria da sua pregação e o principal Sacramento da Igreja tornou-se a Comunhão do pão e do vinho como o Corpo e o Sangue do Cristo ressuscitado. E, neste ato, disse o Apóstolo Paulo, “proclamando a morte do Senhor, eles confessam a Sua Ressurreição”.

Ora, aqueles que se voltam para o Cristianismo não o fazem em busca de ideias ou princípios, mas aceitam a crença na Ressurreição, essa experiência e conhecimento do Mestre ressuscitado. Aceitam a fé na Ressurreição universal, a qual significa a superação, destruição e aniquilação da morte como o objetivo final do mundo. “O último inimigo a ser destruído é a morte!”, exclamou o Apóstolo Paulo numa espécie de êxtase espiritual e, em todas as noites de Páscoa, proclamamos: “Ó morte, onde está o teu aguilhão? Ó inferno, onde está a tua vitória? Cristo ressuscitou e nenhum morto permanece na sepultura. Cristo ressuscitou e a vida reina!” Desta forma, a aceitação – ou não – de Cristo e do Cristianismo é, essencialmente, a aceitação – ou não – da crença na Sua Ressurreição e na linguagem das representações religiosas, que significam a crença na união com Ele, de corpo e alma, dos quais a dissolução e a ruína são a morte.

Não estamos a falar aqui daqueles que rejeitam a Ressurreição de Cristo por rejeitarem a própria existência de Deus, isto é, dos ateus convictos (ou que disso pensam estar convencidos). A discussão diz respeito a uma área bem diferente, pois de muito maior importância é aquela estranha “obscuridade” da fé na Ressurreição (que acabei de mencionar) entre aqueles mesmos crentes, aqueles cristãos, que relacionam de maneira peculiar a celebração da Páscoa com a rejeição real – muitas vezes subconsciente – da Ressurreição de Cristo. Ocorreu no Cristianismo histórico uma espécie de retorno ao conceito pré-cristão de morte, o qual consiste, em primeiro lugar, no reconhecimento da morte como uma “lei da natureza”, isto é, um fenómeno a ela inerente, com o qual, não importa quão assustador seja, é preciso “chegar a um acordo” e aceitar. De facto, todas as religiões não-cristãs, todas as religiões naturais, todas as filosofias estão essencialmente ocupadas com a nossa “conclusão” (a ideia a que chegamos) sobre a morte, ao tentar demonstrar-nos a fonte da vida imortal, da alma imortal, em algum tipo de mundo alienígena para além do túmulo. Platão, por exemplo, bem como inúmeros dos seus seguidores, ensinavam que a morte seria uma libertação do corpo – desejada pela alma – e, nessa circunstância, a fé na ressurreição do corpo não é somente desnecessária, como também incompreensível e, até mesmo, falsa e mentirosa. A fim de perceber todo o sentido da crença cristã na Ressurreição, não devemos partir dessa crença em si, mas do conceito cristão do corpo e da morte, pois aí está a raiz do mal-entendido, mesmo dentro do Cristianismo.

 A consciência religiosa assume que a Ressurreição de Cristo é, antes de tudo, um milagre – e é claro que assim o é. Mas, para a consciência religiosa média, esse milagre é ainda maior: o milagre de todos os milagres permanece “único”- por assim dizer – porque pertence a Cristo. E já que reconhecemos que Cristo é Deus, esse milagre deixa de o ser em certo sentido, pois Deus é o todo-poderoso, Deus é Deus, Ele pode fazer qualquer coisa! Qualquer que tenha sido a morte de Cristo, isso significa que o Seu poder e força divinos não permitiram que Ele permanecesse na sepultura. No entanto, o facto é que tudo isso compreende apenas metade da antiga interpretação cristã da ressurreição de Cristo. A alegria do Cristianismo primitivo, que ainda vive na Igreja, nos seus serviços, nos seus hinos e preces e, especialmente, na incomparável festa da Páscoa, não separa a Ressurreição de Cristo da Ressurreição universal, que se origina e começa na Ressurreição de Cristo.

 Ao celebrar, uma semana antes da Páscoa, a ressureição de Lázaro, a Igreja confirma solene e alegremente que esse milagre é uma confirmação da Ressurreição universal. Nas mentes dos fiéis, porém, essas duas metades inseparáveis – a fé na Ressurreição de Cristo e a fé na Ressurreição universal por Ele iniciada – desconectaram-se de alguma forma. O que permanece intacto é a crença no ressurgimento de Cristo dos mortos, a Sua Ressurreição de corpo, corpo esse que Ele convidou o incrédulo Tomé a tocar: “Alcança o teu dedo e lança-o nas Minhas feridas; e não sejas infiel, mas crente” .

Agora, quanto ao nosso destino final, o destino após a morte, ao qual denominamos o mundo para “além da sepultura” e que, gradualmente, deixou de ser interpretado à luz da Ressurreição de Cristo e da sua relação com ela; no que diz respeito a Cristo, confirmamos que Ele ressuscitou dos mortos, mas, no que diz respeito a nós mesmos, dizemos que cremos na imortalidade da alma, na qual os gregos e os judeus acreditavam antes de Cristo e todas as religiões acreditam, sem exceção, e para a qual, a convicção na Ressurreição de Cristo (apesar disto pode soar estranho) é até desnecessária.

Qual é a razão por detrás dessa estranha bifurcação? A razão está no nosso conceito de morte, ou melhor, num conceito diferente de morte, entendida como a separação da alma do corpo. Toda a “religiosidade” pré e extra-cristã ensina que essa separação deve ser considerada não apenas “natural”, como também positiva, ou seja, uma libertação da alma do corpo, uma vez que este a impede de ser espiritual, celestial, pura e abençoada. Como na experiência humana o mal, a doença, o sofrimento e as paixões surgem do corpo, o objetivo e o significado da religião – e da vida religiosa – tornam-se, naturalmente, a libertação da alma dessa “prisão” corporal, libertação que ocorre, precisamente, na morte e que lhe permite atingir a sua plenitude. É preciso enfatizar, porém, que esse conceito de morte não é cristão, aliás, muito pelo contrário, tal ideia é incompatível  e manifestamente contrária ao Cristianismo, o qual proclama, confirma e ensina que a separação da alma do corpo, à qual chamamos morte, é má e não faz parte da criação de Deus, uma vez que entrou no mundo, tornando-o sujeito a si mesmo e oposto a Deus, por violar o Seu desígnio, o Seu desejo pelo mundo, pela humanidade e pela vida. É a morte que Cristo veio destruir.

Mas, novamente, no que diz respeito à interpretação cristã da morte, não tanto para entender, mas sim para sentir, devemos começar por dizer, pelo menos, algumas palavras sobre esse desígnio de Deus, tanto quanto nos foi revelado nas Sagradas Escrituras e, na sua plenitude, em Cristo, nos Seus ensinamentos, na Sua morte e na Sua Ressurreição.

Esse desígnio pode ser simples e concisamente delineado do seguinte modo: Deus criou o homem com um corpo e uma alma, isto é, ao mesmo tempo, espiritual e material e é precisamente a essa união do espírito, da alma e do corpo que, na Bíblia, denominamos homem. O homem, criado por Deus, é um corpo animado e um espírito encarnado e, por isso, qualquer separação, e não apenas a separação final, na morte (mas mesmo antes dela), ou seja, qualquer violação dessa união é má: uma catástrofe espiritual. A partir disso, recebemos a nossa crença na salvação do mundo através do Deus encarnado, isto é, a nossa crença na Sua aceitação da carne e do corpo, este no pleno sentido da palavra, ou seja, o corpo que precisa de comida, que se cansa e sofre. Assim, aquilo que, nas Escrituras, denomina-se vida e que consiste sobretudo no corpo humano animado pelo espírito que se fez carne, não chega ao fim com a morte, ou seja, com a separação da alma do corpo. Não, o homem não desaparece na morte, pois a criação não pode destruir aquilo que Deus chamou do nada à existência. O homem, porém, é mergulhado na morte, na escuridão da falta de vida e da debilidade para, como diz o Apóstolo Paulo, ser entregue à destruição e à ruína.

Aqui, gostaria de repetir e enfatizar que Deus não criou o mundo para essa separação, morte, ruína e corrupção. É por tal razão que o Evangelho cristão proclama que “o último inimigo a ser destruído é a morte”. A Ressurreição é a recriação do mundo na sua beleza e totalidade originais. É a completa espiritualização da matéria e encarnação do espírito na criação de Deus. O mundo foi dado ao homem, assim como a sua vida e, por essa razão, de acordo com o nosso ensinamento cristão ortodoxo, Deus não o aniquilará, mas transfigura-lo-á em “um novo céu e uma nova terra”, no corpo espiritual do homem, no templo da presença de Deus e da Sua glória na criação.

“O último inimigo a ser destruído é a morte …” e essa destruição – o extermínio da morte – começou quando o Filho de Deus, no Seu amor imortal por nós, desceu voluntariamente à morte e à sua escuridão, preenchendo o seu desespero e horror com a Sua luz e o Seu amor. É por isso que cantamos na Páscoa não apenas “Cristo ressuscitou dos mortos”, mas também “pisando a morte pela morte…”

Ele, sozinho, ressuscitou dos mortos e destruiu a nossa morte, juntamente com o seu domínio, o seu desespero e a sua finalidade. Cristo não nos promete o Nirvana ou algum tipo de vida enevoada além do túmulo, mas a Ressurreição da vida, um novo céu e uma nova terra: a alegria da Ressurreição universal. “Os mortos levantar-se-ão e os que estão nos túmulos cantarão de alegria …” Cristo ressuscitou e a vida permanece, a vida “vive”. Esse é o significado; essa é a alegria interminável da confirmação verdadeiramente central e fundamental do Símbolo de Fé: “E no terceiro dia ressuscitou de acordo com as Escrituras”. Segundo as Escrituras, ou seja, de acordo com esse conhecimento da vida, esse é o conceito para o mundo e a humanidade, para a alma e o corpo, para o espírito e a matéria, para a vida e a morte, o qual nos foi revelado nas Sagradas Escrituras. Essa é toda a fé, todo o amor e toda a esperança do Cristianismo. É por essa razão que o Apóstolo Paulo disse: “Se Cristo não ressuscitou, então a vossa fé é em vão”.

Fonte: “Paradosis”, editor Zóssima.
Redação atual: Gabriela Mota

Publicado emEspiritualidade, Liturgia e Sacramentos

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