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Padre Jerónimo Thomaz – DICAS PARA A QUARESMA

Como diz S. Leão Magno num sermão para a Quaresma (sermão 42), “embora não haja nenhum tempo que não seja repleto de dons divinos e em que por sua graça nos não faculte acesso à sua misericórdia é este o momento de com maior empenhamento e proveito espiritual sermos movidos e com maior confiança nos animarmos”. E acrescenta: “deveria a incessável devoção e a continuada reverência para com tamanhos mistérios” levar-nos a “permanecermos na presença de Deus como é conveniente que sejamos achados na própria festa da Páscoa”. Como, porém, “tal fortaleza é de poucos” torna-se necessário este tempo “para sacudirmos os corações da poeira mundana” de modo a “remirmos por obras pias as culpas de outros tempos e as cozermos em piedosos jejuns”.

Todo o jejum deve ser feito em espírito de alegria e ação de graças pelos benefícios que Deus nos concede e não num espírito de servil obediência às práticas que a igreja nos preceitua, já que vivemos sob a Lei da Graça, cuja essência é o amor, e não sob a Antiga Lei, cuja substância era o temor. Quando jejuarmos, seja tendo em mente que a Deus nada podemos oferecer que lhe faça falta, pois de tudo é abundante, mas numa renúncia simbólica, como se disséssemos a Jesus: “senta-Te comigo à mesa, pois guardei para Ti os melhores manjares” e nos contentássemos com os mais vis.

Como recomenda S. Basílio, devemos abster-nos de carne, não porque a carne seja impura, mas para em espírito restaurarmos a inocência de Adão, que para se alimentar se contentava com frutos e sementes, sem violentar os animais seus companheiros e, como obra das mãos de Deus, seus irmãos. Quem vive no mundo e nele trabalha, nem sempre pode comer o que desejaria, pois o mundo não é um mosteiro, em que apenas seja posta ao nosso alcance comida apropriada para a época. Creio que neste país nem sempre é possível acharmos, numa cantina ou num restaurante, os pratos adequados; mas é sempre possível comer peixe, o que sempre é melhor do que carne, já que os peixes não são nossos colegas e companheiros sobre a terra seca. Melhor do que comer peixe é consumir animais inferiores, como moluscos e crustáceos, que a tradição ortodoxa autoriza, por condescendência para com a as nossas limitações e as nossas fraquezas. Quem cozinha para si e come em casa pode mais facilmente preparar pratos vegetarianos e contentar-se com eles. Quanto aos convites que recebemos, se pudermos, será melhor adiá-los para depois da Páscoa, até para não perdermos um tempo precioso com conversações inúteis, fátuas ou simplesmente mundanas. Em casos especiais, como o aniversário de um parente chegado ou cousa semelhante, o conselho que me deu o Pe Plácido Deseille foi aceitar e, se não houver escolha, comer do que nos seja oferecido, mas com moderação e temperança.

De ovos, queijos e outros laticínios, ou doces feitos à base deles é mais fácil abstermo-nos, exceto por exemplo durante uma viagem em que tenhamos de comer do nosso farnel, não sendo possível fazer sânduiches de outras coisas. O mesmo se diga do vinho e do azeite, embora se comermos uma sopa preparada por outrem seja difícil evitar que seja temperada com azeite. De qualquer modo o que se deve evitar não é a substância do azeite (que de qualquer modo se contém nas azeitonas, que segundo a tradição é lícito comer neste período) mas o gosto de consumir comida condimentada, nomeadamente as saladas, preferindo-lhe a xerofagia, isto é, a ingestão de alimentos secos, condimentados apenas com sal.

O que necessitamos quotidianamente é de hidratos de carbono (açúcares, farináceos, etc.); de proteínas apenas sentimos a falta ao cabo de algumas semanas. De qualquer modo podemos achá-las nas leguminosas (feijões, favas, lentilhas, tremoços) ou então nos moluscos, crustáceos e ovas de peixe, que são consideradas alimento de jejum. Os doces de gergelim (sésamo) são também ricos em proteínas; o chocolate negro (sem leite) só tem c. 3% de proteínas, mas além de conter glúcidos e lípidos é estimulante, ativando o metabolismo e afastando o sono.

No que respeita à quantidade, o ideal seria apenas tomarmos, de segunda a sexta, uma refeição por dia. Eu, por exemplo, não consigo, porém, passar sem tomar qualquer coisa pela manhã (geralmente um chá açucarado, duas torradas com mel ou com compota e um iogurte de soja), pois tenho muitas vezes ataques de hipoglicémia e começo a desfalecer por falta de açúcar. Almoço; e à noite tomo uma sopa, geralmente “sopa azeda”, uma receita dos Açores: batata-doce, batata-semilha, feijão encarnado e cebolas, cozidas com um pau de canela, a que no fim se ajunta vinagre, para compensar a doçura da batata-doce, e daí o seu nome; e em seguida alguma fruta. Em muitos mosteiros do Monte Athos, porque cada um tem a sua compleição física diferente da dos demais, serve-se nos dias de jejum também jantar; mas só vai ao refeitório quem sente realmente falta disso. Um dos Apoftegmas dos Padres do Deserto diz: “se não podes passar sem comer, come, mas procura ficar sempre um pouco aquém da saciedade”.

Na regra dada aos primeiros jesuítas pelo seu fundador recomendava-se que quem sentisse fome e precisasse realmente de comer, comesse pão seco — e parece-me uma excelente regra, pois o pão é, por assim dizer, um alimento completo.

Uma prática quaresmal que muito me toca é a liturgia dos pressantificados, que se celebra acoplada às vésperas de segunda a sexta-feira durante praticamente toda a quaresma. É como se se desse como prémio a Sagrada Comunhão a quem tenha agüentado o dia todo sem comer. Eu, e por certo muitos como eu, não agüento, de modo que como qualquer coisa pela manhã, geralmente o pequeno-almoço que faço aos outros dias, mas com uma malga de sopa azeda que tem glúcidos e prótidos e me permite ficar o resto do dia sem comer. Há que ter em conta não tomar mais alimentos após seis horas antes da comunhão.

Na quaresma é também recomendado dedicarmo-nos mais intensamente à oração. Uma vez que a maior parte de vós não dispõe em língua que conheça da tradução dos ofícios divinos, próprios para cada dia da quaresma, compilados no Triódio,

pode, com os textos compilados no nosso Devocionário Ortodoxo, orar de modos variados escolhendo ora um texto ora outro, para não criar fastio nem demasiado automatismo. Como cada um tem o seu dever de estado, ou seja, dever inerente ao estado em que vive (marido, pai de filhos, docente, funcionário, bolseiro, etc., etc., etc.) há que ter em atenção que o tempo a dedicar à oração deve ser escolhido de modo a não implicar com os deveres de cada um, mas antes roubado ao sono, ao descanso, às distrações, etc. — sem evidentemente com isso arruinar a saúde de cada um, que tem para cada um suas exigências, consoante a sua história clínica.

Uma prática especificamente quaresmal é a recitação das Completas Maiores, que não constam do Devocionário mas envio juntamente. Como o ofício se compõe de três noturnos, pode optar-se por recitar apenas um, voltando de três em três dias ao começo.

Outra boa prática quaresmal é a recitação da hora Sexta, por volta do meio-dia. Durante a Quaresma faz-se a Sexta, todos os dias de segunda a sexta-feira, uma leitura da profecia de Isaías, que com o seu messianismo e a sua poesia é uma boa preparação para a Páscoa. A quem quiser posso mandar a lista das perícopes escolhidas para cada dia, mas isso demorar-me-á algum tempo.

Outra prática muito tradicional é a leitura semanal do Saltério; como os salmos são 150 dá uma média de cerca de 21 por dia. Os livros litúrgicos bizantinos preveem a recitação do saltério completo duas vezes por semana durante a Grande Quaresma, mas, para leigos que vivem no mundo, uma vez é perfeitamente suficiente. Posso mandar-vos a repartição tradicional dos salmos, que se dividem em 20 catismas ou sessões; o costume é recitar dois ou três de manhã e um à tarde. Quem quiser pode dividir o saltério a seu talante, tendo em atenção que o salmo 118 que é muito longo constitui por si só um catisma, que na tradição bizantina se recita ao sábado de manhã, num ofício pelos mortos. Já tenho traduzidos de grego em português uns 110 salmos, pelo que me faltam ainda traduzir 40; mas podeis lê-los por qualquer Bíblia. Conforme já disse várias vezes, acho que a melhor tradução em português é a da Bíblia dos Capuchinhos. De qualquer modo, mando-vos juntamente a tradução que fiz dos 7 “salmos penitenciais” que constituem uma boa meditação para a Quaresma. As notas que inseri no texto são notas de erudição a justificar a tradução por que optei; não se deve perturbar com a sua leitura a recitação dos salmos. Quem esteja interessado deve lê-las previamente.

A oração não deve ser mecânica, mas pensada e, sobretudo, interiorizada no coração. S. Inácio de Loyola, nos seus Exercícios Espirituais, que S. Nicodemos Hagiorita traduziu em grego, em complemento da Filocalia, entre outros métodos que pessoalmente me dizem pouco, sugere um de que muito gosto: não passar a um versículo de salmo sem ter saboreado e, por assim dizer, esgotado o sabor do precedente.

Uma regra de ouro é a seguinte: mais vale rezar bem do que rezar muito. Durante a Quaresma creio que a boa conta para pessoas que vivem no mundo será dedicar à oração, entre a de manhã e a da tarde, uma média de uma hora a hora e meia por dia — sem contar o tempo que se dedique à Lectio Divina, ou seja, à leitura espiritual, que deve ter um carácter lento e meditado, constituindo assim também ela como que uma forma de oração. Todos os textos dos Padres da Igreja são bons, mas o mais recomendado na Quaresma é a Escada Espiritual de S. João Clímaco, de que tenho traduções francesa e italiana, mas que não estou certo de que esteja traduzido em português. No século XVI foi editada em Portugal — mas em castelhano.

Se dedicardes à oração e à leitura espiritual, no seu conjunto, cerca de duas horas por dia, será uma boa Quaresma!

 

Publicado emEspiritualidade

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