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Ludmilla Garrigou – ÍCONE OU QUADRO? ICONÓGRAFO OU ARTISTA?

Tradução de monja Rebeca (Pereira)

Hoje, todos sabem que um ícone é uma imagem santa, uma imagem sagrada, uma imagem teológica e litúrgica; uma imagem que “fala de Deus” e, paradoxalmente, convida os nossos olhos a contemplarem o mundo invisível; “pelo intermédio da visão sensível, nosso pensamento recebe uma impressão espiritual que eleva-se à invisível Divina Majestade”, diz São João Damasceno.

Pode-se gostar ou não de um ícone. Mesmo sendo cada vez mais objeto de apreciação, o Ocidente não sabe ainda muito bem qual é atitude correta diante dele. Alguns o julgam hierático, rígido, sem expressão ou triste. Outros dizem não conseguir rezar diante dum rosto aparentemente duro e sem compaixão, sem misericórdia, sem ternura… Outros ainda sensibilizam-se diante do ícone dito da “Virgem de Vladimir”, pois ela é “impenetrável” e parece sentir dor por causa do “gládio que trespassará sua alma”. (Lc. 2,35). Com relação ao ícone da Santíssima Trindade de Rublev, temos que foi longamente estudado e explicado; neste caso, então, o espírito cartesiano do homem moderno ”entende“, “analisa”, encontra-se satisfeito e “admite” certas sensações, mas poucos entendem espontaneamente o significado profundo do ícone.

Usaremos como exemplo um assunto bem conhecido; a pintura da cena da natividade feita por um pintor da Renascença comparado ao ícone do Nascimento de nosso Senhor; por que somos logo atraídos pelo quadro da Renascença? Porque é realista e apto a comover; por sua vez, o ícone não é pintado com o intuito de comover, pelo menos de início.

Por quê? Porque, a primeira imagem apela ao sentimento e a segunda, ao espiritual. O ícone não é apenas a lembrança (reminiscência) de um fato histórico, mas sim o mistério da Encarnação do Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que Se “manifesta” para recriar o mundo. A Virgem, neste ícone, e depois em todos os outros ícones, não é apenas a Mãe desta pequena criança, Jesus, mas sim a Mãe de Deus. O ícone não brinca com os sentimentos, mas indica primeiramente toda uma verdade teológica.

O ícone é feito para a oração; a liturgia é o seu verdadeiro contexto. É possível rezar diante de um quadro da Renascença, por mais bonito que seja? Não. Por quê? Porque está muito impregnado pela personalidade do pintor. Vamos considerar, então, outra pergunta: Existe uma diferença entre um pintor “retratista”, por exemplo, e um pintor de ícones? Sim, na medida em que o pintor de ícones não é um “artista”. Se ele tem a sensibilidade deste, ele não se considera como tal. Em geral, o artista tenta encontrar o seu estilo, sua maneira própria de se expressar e de traduzir o seu estado de alma. Por sua vez, o iconógrafo procura apagar ao máximo o que lhe é próprio, pessoal, buscando a abnegação de si mesmo; ele busca esvaziar–se para ser preenchido… O artista (ou mais precisamente aquele que faz da arte sua profissão) sempre tem muita dificuldade em esquecer de si e renunciar ao seu talento, ao seu “eu” dominador. Muitos artistas passaram pelo nosso ateliê buscando aprender a iconografia; todos tiveram muitas dificuldades no início, embora fosse possível prever o contrário, em virtude da facilidade que tinham na manipulação dos pincéis e das tintas.

Não é necessário que o ícone seja “artístico”. Aliás, não se pode abordá-lo unicamente sob o ângulo pitoresco, estético ou técnico. Todo iconógrafo deve aspirar a BELEZA, a uma beleza transfigurada do “novo Adão”, o Adão salvo; cada traço do pincel deve ser “bom”, ou seja “verdadeiro” mesmo se é hesitante, acanhado. Você já viu ícones lindíssimos (“belos” na aparência), de linhas seguras, de cores sabiamente usadas, de composição segura, mas que, executados por artistas que possuem boa noção de seu valor e de sua competência (quase todos sem fé em Deus) produzem ícones frios e que não “falam”? Por outro lado, existem esses “pobres” ícones simples, humildes na execução pictural, mas que têm uma qualidade adoradora, ou seja, que pedem uma parada do olhar, dando um estímulo no coração do espectador.

Isto quer dizer que nenhum iconógrafo é artista? Claro que não! Mas se um artista pode tornar-se iconógrafo, um iconógrafo não deve e não pode tornar-se meramente um artista…

O pintor de ícones, não podendo ser um artista, não poderia ser um artesão? Sim… Um instrumento, mas não o “motor”,.. Ele seria, na verdade, um “pincel” na mão de Deus.

São João Damasceno, defensor dos santos ícones no séc. VIII dizia acerca do pintor de ícones: “O sacerdote consagra o pão e o vinho em Corpo e Sangue de Cristo, o pintor sagrado consagra a matéria bruta em um mundo transfigurado. Ele pega o pão ordinário, forma, linha, cor, assunto, e faz desse pão, dessa matéria, dessa forma, dessa visão estética natural, algo sobrenatural, espiritual, divino, Corpo e Sangue de Cristo. Eis porque a instrução e a iniciação nessa arte são absolutamente necessárias”!

Quem pode tornar-se pintor de ícones? É uma vocação? Outrora, apenas os monges pintavam ícones e diz-se, no 7º Concilio Ecumênico: ”se o pintor não é monge, cabe ao Bispo responder pela santidade de sua vida”. Hoje, todo cristão pode fazer esta aproximação, na medida em que faça disso uma caminhada espiritual, sabendo ou não pintar. “O iconógrafo contemporâneo deve reencontrar a atitude interior dos iconógrafos de outrora, ou seja, deixar viver dentro dele a mesma inspiração. Assim, ele encontrará a verdadeira fidelidade que não é repetição, mas sim nova inspiração, contemporânea, da vida interior da Igreja”. (Léonide Ouspensky)

Sim, há uma fidelidade à Tradição do ícone, que os Ortodoxos de modo preferencial conseguiram preservar no decorrer dos séculos; fidelidade ao aprendizado, à caminhada espiritual que o ícone subentende e que implica na proibição de fazer dele uma “técnica” na qual bastaria transmitir algumas “receitas” para que pudesse ser produzido.

O simples fato de reproduzir gravuras não faz sentido, na medida em que não se conhece a geometria que as rege, condicionadas que estão à teologia.

Se não iniciarmos o ícone pelo desenho, jamais vamos compreendê-lo. Da mesma maneira que cada cor, cada gesto, cada modo de proceder estão enraizados na teologia e na oração, e supõe todo um movimento espiritual que pede acompanhamento. Deve-se possuir muita paciência, humildade e … vários anos de aprendizado para que se possa dizer um dia, talvez, que domina-se, “um pouco”, a arte de pintar ícone. Entretanto, se o Espírito Santo em vós não estiver inspirando a pintura do ícone, será somente uma pobre obra humana, talvez uma obra de arte, mas com certeza, não um ícone…

O trabalho do iconógrafo é, por excelência, um trabalho de silêncio, de oração, e de estar só.

O seu único objetivo é transmitir, pelo ícone, seu fervor religioso, que é fonte de vida espiritual; é de viver e expressar a sua fé por esta via. Mas, através dos tempos, os iconógrafos agruparam-se em ateliê, assim como os Companheiros da Idade Média, não apenas para receber um ensinamento, ou poder “praticar“ melhor a abnegação de si, por humildade e verdadeiro anonimato, mas antes de mais nada para que o pintor “isolado” não possa cometer erros dogmáticos na iconografia.

 Todos os ícones antigos são ditos “canônicos” e é preciso conhecer bem estes dogmas e cânones antes de abordar toda inspiração pessoal. O agrupamento permite uma certa verificação e obediência à Tradição, ou seja, àqueles que nos precederam na Verdade. Não se deve e não se pode “sair deste agrupamento”, uma vez que, igualmente, a iconografia recebe seu “ministério” da Igreja.

É no meio de uma comunidade eclesial que o iconógrafo vive a sua plena “função”. Ele está a serviço da Casa de Deus… Ele depende desta Casa, assim como um ateliê deve ser “obra” da Igreja e depender da Igreja. Como já foi dito antes, o iconógrafo nem é artista, nem artesão independente… Ele está a “serviço de”.

O ícone é elaborado, é construído lentamente, segundo toda a simbologia requerida e conforme os sete dias da criação do mundo (Gênesis). O exercício do “gota à gota” exige de cada aluno muita paciência, renúncia, perseverança… Essa “gota” deve confundir-se com a “oração do coração” que, aos poucos, dá o ritmo do sopro e guia o punho. O trabalho sobre si mesmo é tão importante quanto aquele que se realiza na prancha e as “transparências“ aplicam-se tanto ao ícone quanto a todo o ser… Os modelos escolhidos são apenas suportes para a compreensão da construção do ícone. Convém aprender a interiorizar a imagem, disponibilizar-se à recetividade por meio do silêncio, da oração, do jejum, para não se ter apenas que “copiar” o ícone (do séc. XVI, por exemplo) mas viver este ícone e transmiti-lo neste fim de séc. XX…

E, na medida em que o ícone é ensinado segundo conhecimentos seguros e no seio da Igreja Ortodoxa, não há motivo para temer “a iconografia ocidental”: ela permanecerá fiel à Tradição, mesmo que ela se transforme e se torne contemporânea à nossa época e “local”, ou seja, em solo ocidental. Mas, se o ícone torna-se moda de uma “época”, de acesso demasiado fácil para todos, e ensinado sem discernimento não apenas pela Tradição oral, mas por publicações de todo tipo, inclusive por meio de livros técnicos, ainda que sérios, oferecendo a possibilidade de aprender pelas próprias experiências do leitor, temos então que temer o pior, com toda certeza.

É pedido a quem ensina a iconografia que seja um ecônomo, à imagem da “ECONOMIA DIVINA”, preservando-se, assim, o ícone e sua Tradição. “A composição dos ícones não é deixada à iniciativa dos artistas; ela está ligada aos princípios fundamentados pela Igreja e pela Tradição religiosa. Por sua vez, a arte pertence aos pintores, mas a ordem e a disposição pertencem aos Padres” (VII Concílio Ecumênico).

Publicado emHistória Eclesiástica, Teologia Ortodoxa

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