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Etiqueta: Gregório Palamas

Padre Jerónimo Thomaz: Kenôsis do Filho de Deus e do Espírito Santo

 

Deportado e prisioneiro na Assíria, assim orava Tobias ao Senhor: “Bendito és Tu, ó Deus vivo, cujo reinado se estende pelos séculos! (…) Confessai-O, filhos de Israel, à vista das nações, pois Ele nos dispersou entre elas: proclamai aí a Sua majestade e exaltai-O perante todo o ser vivente”. Sem pretender de modo algum perscrutar os desígnios do Senhor, que permanecem insondáveis, não posso arredar inteiramente o pensamento de que Deus — agindo, como sempre através de causas segundas, neste caso, condições económicas e políticas — terá permitido a diáspora de tantos cristãos do Leste da Europa, para que proclamem no Oeste as suas maravilhas e assim colaborem na re-espiritualização do Ocidente e na renovação do pensamento teológico ocidental.

Disso temos já um exemplo, no que se passou após a revolução russa de 1917, que obrigou muitos filósofos e teólogos da Rússia a refugiarem-se em países ocidentais. Foi assim que em 1924 surgiu em Paris o Instituto de Teologia Ortodoxa S. Sérgio, em que ensinaram teólogos da envergadura dos arciprestes Sérgio Bulgákov e Jorge Florovsky, pioneiro da corrente neopatrística e do movimento ecuménico, para citar apenas dois nomes. A sua influência propagou-se rapidamente à Igreja Católica-Romana, em que imperava então uma Escolástica racionalista, que na sua decadência se tornara estéril, dissociando a teologia da vivência cristã e reduzindo-a a uma cadeia de teoremas sobre a Divindade, que a aproximava mais da matemática do que da Fé. Não é por mero acaso que em Coimbra, enquanto perdurou a Faculdade de Teologia, em 1910 condenada à morte pela república, muitos estudantes se diplomavam simultaneamente em Teologia e Matemática…

No entanto, sem renegar a sua tradição, teria podido a igreja pós-tridentina encontrar nela a base para reagir a esse imperialismo da razão, que, para retomar a expressão usada em 1270 e de novo em 1277 pelo arcebispo de Paris e pela Sorbonne, nos seus dois sucessivos alertas contra os perigos da Escolástica que então se desenvolvia, “sujeitava Deus à lógica de Aristóteles”. De facto, ao crescente imperialismo da lógica aristotélica opôs-se desde logo a teologia monástica, mais experiencial, de que foi figura de proa o pai da escola franciscana, Boaventura de Balneorrégio (c. 1218-74), “ministro-geral” da sua ordem: sobretudo no seu Breviloquium, e no seu Itinerário da mente para Deus, rejeita como “manca, defeituosa e sem sentido humano” a filosofia que se baste a si mesma, sem reabilitar o homem através dos três graus consecutivos da ciência, da sabedoria e da bem-aventurança.

Kallistos Ware – Orar com o corpo: o método hesicasta e os paralelos não-cristãos 

Lembra-te de Deus com mais frequência do que respiras.

(São Gregório de Nazianzo)

UM FANTASMA NUMA MÁQUINA?

“Glorifica a Deus no teu corpo”, disse São Paulo (1 Co 6:19). Mas como, na prática, isso pode ser feito? Como podemos tornar a nossa parte física um participante ativo no trabalho de oração? Isso é algo que, como cristãos, precisamos pensar, especialmente nos tempos que correm, pois estamos a viver numa época em que, tanto na filosofia como na física e na psicologia, mostra-se cada vez menos útil defender uma dicotomia entre o espírito e a matéria, entre a alma e o corpo. A declaração de Carl Gustav Jung é típica: “O espírito é o corpo vivo visto de dentro e o corpo é a manifestação exterior do espírito vivo – os dois são, realmente, um.” [1] Se os escritores da espiritualidade cristã continuarem a assumir um forte contraste entre o corpo e a alma – como frequentemente o fizeram no passado – as suas palavras parecerão, cada vez mais, irrelevantes para os seus contemporâneos seculares.

Na realidade, uma divisão entre o corpo e a alma – do tipo platónico – não tem lugar na tradição cristã. A Bíblia vê a pessoa humana em termos holísticos e, apesar da pesada influência do platonismo, esse ponto de vista unitário tem sido, repetidamente, reafirmado no cristianismo grego. “A alma em si é a pessoa?”, foi uma pergunta encontrada num texto atribuído a Justino Mártir (165 d.C). “Não, é simplesmente a alma da pessoa. Chamamos de corpo a pessoa? Não, chamamos o corpo da pessoa. Então, a pessoa não é nenhuma dessas coisas por si só, mas sim o todo único formado a partir de ambas. ”[2] O teólogo grego contemporâneo Christos Yannaras insiste, em termos semelhantes, que o corpo deve ser considerado não como uma “parte” ou “componente” da pessoa, mas como o “modo de existência” total da pessoa, como a manifestação, para o mundo exterior, das energias da nossa natureza humana na sua integralidade. [3] Não sou um “fantasma numa máquina”, mas uma unidade indivisa. O meu corpo não é algo que tenho, mas algo que sou.

Não é suficiente, no entanto, afirmar essa antropologia holística na teoria. Precisamos dar uma expressão concreta e prática à nossa teologia dos Sacramentos, especialmente o da Eucaristia e o do Matrimónio e, igualmente, à nossa teologia da oração. Muitas vezes, porém, no ensino cristão, isso não foi feito. Numa definição famosa, Evágrio Pôntico (345-399) descreveu a oração como “a comunhão do intelecto [nous] com Deus”; é “a mais alta inteleção do intelecto (…) a atividade que melhor corresponde à dignidade do intelecto (…). Aproxima-se do imaterial dum modo não-material. ”[4] Fica, então, a pergunta: que lugar tem o corpo no empreendimento da oração? De facto, Evágrio foi menos anti-físico do que essas palavras sugerem, uma vez que atribuiu, na oração, uma importante função às experiências corporais, como o dom das lágrimas. [5] Mas a definição que fez da oração nos transmite, certamente, a infeliz impressão de marginalizar o corpo.